quinta-feira, 30 de abril de 2009

A universidade e o conhecimento

A universidade e o conhecimento

Fonte: Mauro Santayana, Gazeta Mercantil, 30 abr. 2009

“O afunilamento do ensino universitário pode produzir eruditos,

mas não contribui para a disseminação da sabedoria”

Na entrevista que concedeu ao jornalista David Leonhart, do "New York Times", o presidente Barack Obama tocou em tema delicado na civilização atual: para que mesmo servem as universidades? Obama defende uma educação de qualidade, do jardim de infância ao fim do curso médio, que prepare as pessoas para a vida comunitária e o trabalho. As universidades devem ser centros de reflexão e de alta pesquisa. Ele deu o exemplo de seus avós maternos, que não fizeram a universidade, tiveram êxito em sua vida profissional e foram felizes. A avó, lembrou o presidente, escrevia melhor do que muitos de seus colegas na Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, e, com um bom curso secundário, chegou a diretora de banco.

A graduação universitária, por si só, não garante o êxito profissional. O presidente lembrou que o desemprego entre os de formação universitária, em seu país, é três vezes superior aos que só têm o equivalente ao nosso segundo grau. Entre nós, os que não conseguem ocupação equivalente à sua formação, são bem mais numerosos. Encontramos todos os dias egressos de universidades, em geral privadas, dirigindo táxis, jornalistas diplomados vendendo planos de saúde, bacharéis sem o exame da OAB, vivendo de pequenos expedientes. Segundo o presidente, o mundo necessita de pessoas que sejam capazes de produzir durante a sua vida adulta, e que, para isso, bastam de 14 a 20 anos de boa escolaridade.

O ponto de vista de Obama é divulgado três dias depois que o mesmo jornal publicou instigante artigo do professor Mark C. Taylor, professor da Universidade de Columbia. Ele lamenta que as universidades estejam formando especialistas em coisas diminutas, pessoas que sabem o máximo sobre o mínimo. Conta que o melhor aluno de um de seus colegas fizera dissertação de mestrado sobre o método usado pelo filósofo medieval Duns Scotus a fim de escolher suas citações. Podemos acrescentar ao raciocínio de Taylor que se a dissertação fosse sobre o pensamento do grande franciscano, que combinava a visão realista do mundo à intransigente defesa da virgindade de Maria, já seria reduzir muito o campo de estudo. Ele poderia situar Scotus na razão escolástica do fim do século 13 – e ofereceria boa contribuição para o exame da história da filosofia cristã.

O afunilamento do ensino universitário pode produzir eruditos, mas não contribui para a disseminação do conhecimento e da sabedoria. Tenho repetido, algumas vezes, dois versos de "Rocket", poema de T.S.Elliot, que me impressionaram pela sua lucidez, e Julien Green recomendou a todas as universidades do mundo inscrevê-los no frontispício de seus edifícios: "Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information?"

Elliot escreveu esses versos em 1934, quando o volume de informações que circulavam no mundo era infinitamente menor do que hoje. O ensino terá que buscar a sabedoria que o conhecimento oculta, e o conhecimento que a informação ofusca. Isso só se obtém com o hábito de pensar, com a capacidade crítica, ao comparar as fontes de conhecimento e, mediante a dialética, encontrar o juízo próprio sobre as coisas.

Segundo Taylor o professor geralmente prepara o aluno para seguir seus passos na vida acadêmica, dele fazendo seu clone intelectual. Trata-se de uma repetição do mesmo, em que o conhecimento produzido é uma volta ao já feito, sem a intervenção do pensamento inovador. Trabalhos acadêmicos em ciências sociais, que custam dezenas de milhares de dólares, são reproduzidos em edições de 500 ou 600 exemplares, e aproveitados por um número bem menor de leitores - salvo quando alguns professores rompem o círculo de giz e publicam seus estudos em editoras privadas.

No passado, o ensino primário, no Brasil, era suficiente para que se aprendesse a ler e a escrever. Com isso, ao ingressar no antigo ginasial, os alunos estavam preparados para apreender o resto. O ministro Fernando Haddad tem identificado nas falhas do ensino de primeiro grau as dificuldades da educação como um todo. Daí a necessidade de, mediante seleção vestibular mais rigorosa, salvar o ensino superior. Sua proposta de vestibular unificado é um bom começo, porque obrigará as escolas secundárias a melhorar seu desempenho, mas é preciso mais. É preciso enterrar as cruzinhas.

Sem massa intelectual poderosa, que só as boas universidades podem produzir, perderemos o nosso lugar no mundo e no século.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Transitoriedade dos suportes de informação

Meses atrás, saiu uma entrevista do Umberto Eco (uma das primeiras postagens deste blog) no qual entre vários assuntos ele borda os suportes de informação. Na edição de ontem do Diário do Comercio, que reafirmo um jornal muito bom de se ler, ele retorna a este assunto. E cá entre nos, ele esta coberto de razão......temas como a substituição da imprensa escrita pela digital escuto desde antes de começar a faculdade de Biblioteconomia à longínquos 7 anos atrás! Hahaha

Bom, só me resta a desejar uma boa leitura!

Transitoriedade dos suportes de informação

Todos os suportes para transmissão da informação são mais transitórios que o livro.

Umberto Eco, Diario do Comercio, 26 abr. 2009

Na jornada conclusiva da Escola para Livreiros, dedicada a Umberto e Elisabetta Mauri, em Veneza, falamos, entre outras coisas, da transitoriedade dos suportes da informação. Foram suportes de informação escrita a estela egípcia, a tabuleta de argila, o papiro, o pergaminho e, obviamente, o livro impresso. Este demonstrou que sobrevive bem por cerca de quinhentos anos, mas só se for feito com papel de trapo.

A partir de meados do século 19 passou-se ao papel feito da madeira e este parece ter uma vida máxima de 70 anos (de fato, basta consultar jornais ou livros dos anos 40 para ver como muitos deles se desfazem enquanto são folheados). Portanto, há tempos se realizam congressos e se estudam meios diferentes para salvar os livros que abarrotam nossas bibliotecas. Um dos meios de maior sucesso (mas é quase impossível utilizá-lo para todos os livros existentes) é escanear as páginas e copiá-las em um suporte eletrônico.

Aqui nos é apresentado outro problema: todos os suportes para a transmissão e conservação da informação – desde a foto até a película cinematográfica, do disquete à memória USB que usamos em nosso computador – são mais transitórios do que nossos livros.

No caso das velhas fitas cassetes, por exemplo, em pouco tempo a fita se enroscava; tentávamos desenrolá-la metendo um lápis no buraco, geralmente com resultados nulos.

As fitas também perdem as cores e a definição com facilidade e, se as usamos para estudar, rebobinando-as e adiantando-as com frequência, deterioram-se rapidamente.

Pois bem, tivemos tempo para nos dar conta do quanto podia durar um disco de vinil sem ficar arranhado demais, mas não tivemos tempo de verificar o quanto dura um CD-ROM – pois, mesmo sendo a invenção que substituiria o livro, saiu rapidamente de mercado porque se podia acessar on-line os mesmos conteúdos a um preço mais conveniente.

Não sabemos quanto vai durar um filme em DVD; só sabemos que às vezes começa a dar problemas quando o vemos muito. E da mesma forma, não tivemos tempo material para experimentar o quanto poderiam durar os discos flexíveis (os floppy disks) de computador: antes de conseguirmos, eles foram substituídos pelos disquetes e estes por discos reescrevíveis e estes pelos pen drives.

Com o desaparecimento dos diferentes suportes, desapareceram também os computadores capazes de lê-los (creio que ninguém tem em casa um computador com abertura para o floppy). E , se não for copiado para o suporte sucessivo tudo o que o anterior continha ( e assim por diante, supostamente durante toda a vida, a cada dois ou três anos), perde-se irremediavelmente – a menos que se mantenha no armário uma dezena de computadores obsoletos, um para cada suporte desaparecido.

Assim, sabemos que todos os suportes mecânicos, elétricos e eletrônicos são rapidamente perecíveis – ou não sabemos o quanto duram e provavelmente nunca chegaremos a saber. Enfim, basta um aumento na tensão, um raio no jardim ou qualquer outro evento muito mais banal para desmagnetizar uma memória.

Se houvesse um apagão grande o bastante, não poderíamos usar nenhuma memória eletrônica. Mesmo tendo gravado em minha memória eletrônica todo o "Quixote", não poderia lê-lo à luz de vela, em uma rede, em um barco, em uma banheira, no balanço, enquanto o livro me permite lê-lo nas condições mais árduas. E se o computador ou o e-book caem do quinto andar, estarei matematicamente seguro de que perdi tudo. No entanto, se é um livro que cai, vai no máximo soltar as folhas completamente.

Os suportes modernos parecem apontar mais para a difusão da informação do que para sua conservação. O livro, por sua vez, foi o instrumento supremo da difusão (pensemos no papel que a Bíblia impressa desempenhou na reforma protestante), mas também da conservação.

É possível que, dentro de alguns séculos, a única forma de obter notícias sobre o passado (com a desmagnetização de todos os suportes eletrônicos) continue sendo um belo incunábulo. E, entre os livros modernos, sobreviverão muitos feitos com papel de alta qualidade, ou os propostos hoje por muitos editores, feitos com papel sem ácidos.

Não sou um reacionário nostálgico do passado. Em um disco rígido portátil de 250 gigas, foram gravadas as maiores obras-primas da literatura universal, da história e da filosofia. É muito mais cômodo tirar do disco rígido em poucos segundos uma citação de Dante ou da "Summa Theologica" do que se levantar e ir pegar um volume pesado em estantes altas demais. Mas estou contente de que esses livros continuem em minhas estantes, uma garantia da memória para quando os fios entrarem em curto nos instrumentos eletrônicos.

Umberto Eco é escritor, autor de A Misteriosa chama da Rainha Loana, Baudolino, O Nome da Rosa e O Pêndulo de Foucault.

Tradução: Rodrigo Garcia

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Biblioteca Digital Mundial

Fonte: Veja

A Unesco lançou oficialmente, nesta terça-feira, o site da Biblioteca Digital Mundial, em que é possível navegar pelo excepcional acervo de livros, manuscritos e documentos visuais e sonoros procedentes de bibliotecas e arquivos do mundo todo. Reproduções das mais antigas grafias e fotografias estão entre os vários documentos raros apresentados em sete idiomas (árabe, chinês espanhol, francês, inglês, português e russo). O lançamento aconteceu na sede parisiense da Unesco, na presença de seu diretor-geral Koichiro Matsuura, e de James H. Billington, diretor da Biblioteca do Congresso Nacional dos Estados Unidos, idealizador do projeto.

Veja alguns exemplos do que pode ser encontrado na Biblioteca Digital Mundial:

Crônica de Terras Estrangeiras (1623)

Trata-se de um mapa do mundo em chinês produzido pelo missionário italiano Matteo Ricci, em 1574. O mapa, que seguia os princípios ocidentais da cartografia, então desconhecidos na China, passou por várias revisões entre 1574 e 1603. Os sacerdotes compatriotas de Ricci, Diego de Pantoja e Sabatino de Ursis, foram instruídos, por ordem imperial, para compor um livro explicando o mapa. Acervo: Biblioteca do Congresso Nacional dos Estados Unidos.

O Códice Huexotzinco (1531)

Coleção de oito páginas de documentos em linguagem pictográfica de parte do testemunho em um processo jurídico contra representantes do governo colonial no México, dez anos após a conquista espanhola em 1521. Acervo: Biblioteca do Congresso Nacional dos Estados Unidos. 

Evangelho de Miroslav (1180)

Manuscrito do evangelho de Miroslav é uma obra litúrgica considerado o mais importante e o mais belo dos livros manuscritos Sérvios. Acervo: Biblioteca Nacional da Sérvia.

Cópia do Mapa do Novo Mundo (1562)

Desenhado pelo cosmógrafo Diego Gutierrez a mando do rei da Espanha. Acervo: Biblioteca do Congresso Nacional dos Estados Unidos.

Imperatriz Thereza Christina Maria

Mulher do último imperador do Brasil, D. Pedro II. A foto faz parte do acervo de mais de 21 mil fotografias reunidas pelo Imperador D. Pedro II. Acervo: Biblioteca Nacional.

Pragmática (1584)

é o primeiro documento impresso da América do Sul sobre a mudança do calendário juliano para o gregoriano, Lima, Peru. Acervo: Biblioteca John Carter Brown (Estados Unidos).

Evangelho de São Mateus (1840)

Tradução Aléute (referente ao povo nativo das ilhas Aléutas - próximas ao Alasca) feita pelo missionário russo Ioann Veniamiov. Acervo: Biblioteca Nacional da Rússia.

Ilustrações da China (1874)

Conjunto de 200 fotografias e cartas descritivas feitas pelo geógrafo escocês John Thomson durante a primeira incursão fotográfica feita sobre a China e seu povo. Acervo: Biblioteca da Universidade de Yale (Estados Unidos)

quinta-feira, 16 de abril de 2009

O bibliotecário que mediu a Terra

John Noble Wilford

A idéia de uma Terra esférica provavelmente cresceu independentemente em muitas culturas, mas o que nós sabemos é que os influentes gregos filósofos como Platão e Aristóteles quem estabeleceram essa idéia no pensamento ocidental. “A esfericidade da terra”, Aristóteles escreveu em Metereologia, na última metade do quarto século antes de Cristo, “é provada pela evidência de nossos sentidos”.

Como outros antes dele, Aristóteles observou o aparentemente movimento das estrelas. Mas Aristóteles notou algo mais. Quando se viajava para norte ou sul, novas estrelas apareciam sobre o horizonte à frente e outras desapareciam sobre o horizonte atrás. O céu parecia de alguma maneira diferente em diferentes latitudes da Terra. Isso sugeriu a Aristóteles que a Terra é uma esfera, e uma não muito larga. Se fosse diferente, as viagens teriam de ser muito mais longas, mais do que do Egito a Atenas para que a diferença nas estrelas pudesse ser notada.

Outros dois fenômenos atraíram a atenção de Aristóteles. Navios desembarcando de um porto desapareciam com os cascos primeiro em qualquer direção que viajassem; se a Terra fosse plana, os navios deveriam ficar menores e menores, se tornar um ponto e então desaparecer. Um eclipse lunar forneceu outra dica. A sombra que caiu sobre a Lua – a sombra da Terra – era sempre curva. “Conseqüentemente”, Aristóteles concluiu, “se o eclipse é causado pela interposição da Terra, a linha curvada é resultado de seu formato esférico”.

Com a força da lógica convincente de Aristóteles, os gregos aceitaram a esfericidade da Terra como um fato, mas eles não tinham resposta para a próxima pergunta: qual é o tamanho dessa esfera?

No início havia apenas estimativas. Apesar de serem profundos conhecedores de lógica, os gregos algumas vezes burlavam a experimentação e a observação sistemática. Platão não fez mais do que uma suposição vaga. Em Phaedo, ele escreveu o que Sócrates disse: “eu acredito que a Terra é muito grande e que nós que habitamos entre os Pilares de Hércules [Gibraltar] e o rio Phasis [no Cáucaso] vivemos em uma pequena parte sobre o mar, como formigas ou sapos em um lago, e que muitas outras pessoas vivem em muitas outras regiões como esta”.

Aristóteles, o qual as observações das estrelas sugeriram que o tamanho da Terra não era grande, calculou a circunferência em aproximadamente 64.000 kilômetros. Arquimedes posteriormente reduziu a estimativa para 48.000. Mas nenhum dos casos indicava como havia se chegado a tais números.

Os chineses, desconhecidos pelos contemporâneos helênicos, devem ter enfrentado as mesmas questões. De acordo com várias estórias, diz a lenda, dois irmãos mediram a Terra. Eles andaram de norte a sul, e então de leste a oeste, e nas duas vezes eles alcançaram o mesmo resultado – 134.000 kilômetros. Se mais do que nada, essa estória prova que os gregos não estavam sozinhos em sua curiosidade pelo tamanho da Terra, ou em sua ignorância sobre como encontrar o resultado.

A primeira medição conhecida da Terra não aconteceu antes que, no terceiro século antes de Cristo, um bibliotecário chamado Eratóstenes teve uma inspiração. Eratóstenes viveu entre 276 e 196 A.C., depois da morte de Alexandre o Grande e antes da ascensão de Roma, em um tempo em que Alexandria superava todas as outras cidades do mundo Helênico. Fundada em 332 A.C. por Alexandre, a cidade se tornou mais rica do que Mileto e Atenas em seu auge, mais poderosa do que qualquer outra cidade então, Antioch ou Smyrna, Ephesus ou Nicaea. Era uma magnífica cidade beirando o Mediterrâneo e o delta do Nilo, uma cidade de palácios de pedra, avenidas largas, parques espaçosos, comércio fervilhante, e um porto conhecido pelos navegantes pelo magnífico faról de mármore branco na ilha de Pharos. Nesse centro comercial circulavam Macedônios, Gregos, Egípcios, Judeus, Persas, Sírios e Negros, dando vibração e agitação ao lugar. Como Herodas, um poeta grego do terceiro século antes de Cristo escreveu: “Alexandria é a casa de Afrodite, e tudo se encontra lá – riqueza, parques, um grande exército, um céu sereno, espaços públicos, filósofos, metais preciosos, rapazes atraentes, uma boa casa real, uma academia de ciências, vinhos finos e mulheres bonitas”.

Os governantes de Alexandria, e de todo o Egito, eram os Ptolomeus. Dentre todos os herdeiros do império do conquistador, eles eram os mais astutos e poderosos. Eles eram ditadores que cobravam altas taxas e mantinham o poder através de um imponente exército. Mas, não diferente de outros ditadores desejosos de prestígio e poder, os Ptolomeus também tinham ambições culturais. Nesse sentido, eles estabeleceram um templo para as Musas, e em tempo se tornou a Meca científica e literária do Mediterrâneo e a maior glória de Alexandria.

Como a sua evolução, o Museu de Alexandria trouxe mais semelhanças com os modernos centros de pesquisa, os chamados think tank, do que outros museus. Astrônomos, matemáticos, físicos, escritores, historiadores e filósofos de todas as partes do mundo Helênico foram convidados para o museu. Seus salários eram pagos pelo tesouro real. Eles viviam e trabalhavam e pensavam em construções dentro da zona real, o Bruchium. A eles eram oferecidos um hall de leitura, uma sala de jantar, laboratórios, jardins botânico e zoológico, um observatório astronômico, e quietos quintais para contemplação. Apesar de um padre egípcio estar por determinação encarregado, provavelmente um artifício real para os contribuintes nativos, os estudiosos pareciam ser independentes de qualquer influência religiosa sobre seus pensamentos. Também não havia qualquer indicação de que os Ptolomeus exigiam resultados “práticos” relacionados aos empreendimentos dos pensadores. Dentre os estudiosos atraídos para o museu estavam Demétrio, Strato, Euclides, Arquimedes, Apolônio, Calimacus e Eratóstenes. Por volta de 240 A.C., Ptolomeu III nomeou Eratóstenes chefe da biblioteca do museu, provavelmente a mais cobiçada posição de sabedoria no mundo Helênico. A biblioteca era o repositório de grande parte do conhecimento mundial registrado, o equivalente em rolos de papiro a 100.000 livros no sentido moderno. Ptolomeu III cometeu atos inescrupulosos para aumentar essa coleção. Por ordem real, qualquer pessoa chegando em Alexandria era revistada por quaisquer rolos em suas possessões, e esses rolos eram confiscados e entregados aos escribas para cópia. As cópias eram eventualmente retornadas aos seus donos, mas os originais permaneciam na biblioteca real.

Eratóstenes tinha tudo para ser mesmo um bibliotecário. Ele era um homem de muitos talentos, que testou e estudou quase todo o conhecimento da época. Ele estudou como gramático e poeta em sua terra natal Cyrene, oeste do Egito. Ele se mudou para Atenas, onde mergulhou na filosofia, ciência e matemática. De acordo com alguns relatos, Eratóstenes escreveu um volume de versos, uma história da comédia, e uma cronologia dos maiores acontecimentos na história Mediterrânea. Se tal versatilidade encantou Ptolomeu III, trouxe para si o desprezo por parte de seus pares, que estavam se tornando cada vez mais especializados. Eles o chamavam de beta e pentatlo. O último era o nome dos atletas que se distinguiam em cinco modalidades esportivas, sugerindo que Eratóstenes era um estudioso de muitos talentos, e talvez – na opinião dos críticos – mestre de nada. O beta significava ser o número dois, depois de alfa, implicando que ele era segundo escalão nos muitos campos do conhecimento em que se aplicava. Essa perversa caracterização pareceu seguir Eratóstenes ao decorrer de sua longa carreira, mesmo depois de seus experimentos para medição do tamanho da Terra.

Mas talvez apenas um homem como Eratóstenes, um polímata e aventureiro intelectual, poderia compreender a história do poço, a história que supostamente lhe deu a idéia para o experimento.

Entre as histórias de viajantes circulando em Alexandria na época, havia uma sobre um poço em Syene, no norte do Nilo em sua primeira catarata, onde o sol brilhou diretamente sobre suas águas profundas ao meio-dia do dia mais longo do ano, 21 de junho. Nada mais estranho havia sido visto em Alexandria. Para Eratóstenes a história significava que Syene (nome grego para Aswan) deveria estar localizada no limite norte dos trópicos.

A suposição baseava-se em observações feitas anteriormente por astrônomos. Por séculos, homens olharam o Sol, a Lua e as estrelas e concluíram que eles deveriam estar fixos dentro de uma grande esfera celeste que girava ao redor de uma Terra estática. O que poderia ser mais plausível?

Afinal, qualquer um poderia ver os movimentos no céu, mas quem poderia dizer que viu ou sentiu a Terra movendo? A Terra, os astrônomos acreditavam, era o centro estacionário de todas as coisas. Os antigos astrônomos começaram a perceber que, pela sua perspectiva de alguma maneira, o Sol não apenas girava ao redor da Terra todos os dias, mas também se movia pra cima e pra baixo no céu dentro de ciclos de 36 dias, maiores em algumas estações e menores em outras. Eles chamaram essa aparente jornada anual do Sol de elipse. Ao delinear a elipse, os astrônomos constataram que o Sol estava quase sempre em um ângulo em relação com o equador celestial, a linha imaginária em que eles dividiram a esfera celeste. Outras observações mostraram que o Sol parecia migrar aproximadamente do 240 sul do equador celestial, para o 240 norte, e então retrocedia o mesmo curso. Isso se tornou conhecido como a obliqüidade da elipse.

Significa que apenas duas vezes por ano, em 21 de março e 23 de setembro, a trajetória do Sol intersecta o equador celestial. Quando isso ocorre, as horas do dias e da noite são iguais - equinócio. E duas vezes por ano, quando o Sol atinge um dos extremos em sua migração norte ou sul, ele permanece no seu maior ângulo em relação ao equador celestial.

Cada uma das linhas imaginárias no céu marcando os extremos da migração solar foi chamada de trópicos, em função da palavra grega tropos, uma “volta”, ao que parecia nesta linha, o Sol parava, girava ou retornava. Ao norte do equador celestial, isso ocorre em 21 de junho, contabilizando o dia mais longo do ano para as pessoas do norte. Ao sul do equador, isso ocorre em 22 de dezembro, fazendo o dia mais curto do ano no norte e o dia mais longo para as pessoas do sul - mas os gregos daquela época geralmente não acreditavam que pessoas poderiam existir ao sul.

Na época de Eratóstenes, os homens haviam traduzido o que ele enxergavam no céu em relação à Terra. Eles falavam de terras abaixo dos trópicos e abaixo do equador. Esse pensamento marcou a origem das zonas geográficas baseadas em latitude e o equador da terra, em um plano com o equador celestial, como um círculo imaginário dividindo a Terra em hemisférios. Tal concepção deu à cartografia suas três primeiras linhas de referência para mapas - o Trópico de Câncer, o Equador, e o Trópico de Capricórnio. O trópico ao norte tornou-se conhecido como o Trópico de Câncer porque o Sol faz sua volta por lá no mês do caranguejo (Câncer), uma das constelações do zodíaco, e sua primeira aparição no ano. Da mesma forma, o trópico ao sul foi chamado de Trópico de Capricórnio por sua relação com a primeira aparição do ano da constelação de Capricórnio.

Agora, claro, nós sabemos que é a Terra, não o Sol, que está se movendo e causando as mudanças dos dias e das estações. O que os gregos do tempo de Eratóstenes não sabiam é que a Terra gira de oeste para leste em seu eixo (a cada 24 horas) e orbita o Sol (uma vez a cada 365 dias). Mas o eixo da Terra não é perpendicular ao plano da órbita da Terra ao redor do Sul. Se não fosse, o Sol brilharia verticalmente apenas sobre o equador da Terra.
Ao invés disso, a Terra está inclinada em um ângulo de mais ou menos vinte e três graus e meio, muito próxima da estimativa dos gregos de vinte e quatro graus para a obliqüidade da elipse do Sol.

Exceto por uma leve oscilação, a Terra inclina-se no mesmo ângulo o ano inteiro, com o seu eixo sempre apontando na direção de Polaris, a estrela do norte. Conseqüentemente, quando a Terra está em uma parte de sua órbita, o pólo norte está inclinado em direção ao Sol e é verão no hemisfério norte e inverno no sul. No outro ponto da órbita, o pólo norte está com inclinação afastada do Sol, e é inverno no hemisfério norte e verão no sul.

Mas se os gregos antigos estavam errados sobre as causas do que eles haviam observado, eles estavam completamente corretos em relação a um efeito: apenas nos trópicos pode existir um sol de meio-dia capaz de irradiar sobre as águas de um poço profundo.

Com isso em mente, Eratóstenes sentiu que ele possuía todo o necessário para medir a circunferência da Terra. Ele estava atento ao fato de que os raios de Sol são, para todos os propósitos e intenções, paralelos quando eles atingem a Terra. Então, se a Terra é uma esfera, a luz do Sol deve atingir diferentes partes da Terra em diferentes ângulos, a curvatura da Terra sendo responsável pela diferença. Isso lhe ocorreu quando, no dia em que o Sol brilhava diretamente sobre o poço em Syene bem ao meio-dia e não havia sombras na cidade, ele lembrou ter visto muros produzindo sombras em Alexandria. Se ele pudesse medir o ângulo da sombra em Alexandria ao meio-dia daquele dia, Eratóstenes pensou, ele poderia calcular o tamanho da Terra sem ter de sair de dentro da biblioteca.

Eratóstenes fez exatamente isso, usando o Sol, o poço, e uma coluna vertical.

Do que Eratóstenes podia aprender com os viajantes, Syene supostamente se localiza ao sul de Alexandria, o que era particularmente conveniente. Isso significava que dois lugares deveriam estar localizados sob o mesmo meridiano e então apontar o mesmo grande círculo da Terra. Um meridiano é metade de qualquer círculo que cruza o equador em um ângulo certo e circunda todo o globo.

Ainda em relação a localização de Syene e Alexandria, significava que se ele determinasse a distância entre as duas cidades, ele saberia a distância exata de um arco do meridiano - ou seja, o tamanho de uma parte do meridiano e conseqüentemente uma parte da circunferência da Terra. Eratóstenes soube que uma caravana de camelos precisava de 50 dias para fazer a jornada e que camelos geralmente percorrem 100 stadia por dia. A distância então deveria ser de 5.000 stadia. Inspetores reais, de acordo com algumas versões da história, percorreram a rota em uma tentativa de confirmar a distância.

Com essas duas informações - a localização no mesmo meridiano e a distância - faltava apenas uma para os cálculos de Eratóstenes. Se o arco do meridiano entre Syene e Alexandria media 5.000 stadia, qual fração do círculo completo isso representava? Era uma pequena ou grande fração? Era isso que Eratóstenes tinha de descobrir.

Seu próximo passo foi um engenhoso exercício de geometria elementar.

No 21 de junho seguinte, quando ele sabia que o Sol brilharia verticalmente sobre o poço em Syene, Eratóstenes foi até um obelisco usado para mostrar as horas através do Sol. Chamado de gnomon, essa coluna vertical apoiava-se em uma base horizontal sobre uma linha norte-sul. O gnomon era tão verticalmente perpendicular ao chão que se você desenhasse uma linha do alto dele até a sua base, a linha passaria pelo centro da Terra.

Quando a sombra do obelisco atingiu a linha do meridiano, significando que o Sol estava no ponto mais alto sobre Alexandria, Eratóstenes se agachou e cuidadosamente marcou o limite da sombra e então mediu o tamanho desde a base do gnomon. E foi isso. Ele havia medido a Terra.

Eratóstenes já sabia então o tamanho da sombra e a altura do gnomon, e isso lhe deu dois lados medidos de um triângulo. Sabendo isso, ele poderia desenhar o terceiro lado do triângulo e então encontrar o ângulo entre o topo do gnomon e os raios do Sol.

Era um ângulo pequeno 7³12’, aproximadamente 1/50 de um círculo completo. Já que não havia sombras em Syene naquele exato momento, com o Sol a pino, Eratóstenes concluiu que a distância entre Syene e Alexandria era de 1/50 da distância de uma volta na Terra. Então, ele calculou, 50 x 5.000 stadia = 250.000 stadia, ou 46.250 kilômetros. A circunferência da Terra teria então, aproximadamente 46.000 kilômetros. Era mais ou menos 16% superior; a circunferência hoje é sabida a ter pouco mais de 40.000 kilômetros. Mas Eratóstenes passou muito perto, considerando que ele trabalhou sem nenhum benefício das ferramentas de medição modernas.

Uma certa dose de sorte favoreceu Eratóstenes, já que, sem tomar conhecimento, ele cometeu diversos erros. Um de seus erros teoréticos, afirmar a perfeita esfericidade da Terra, fez pouca diferença. Mais importante, entretanto, era o fato de que Syene não está localizada exatamente no Trópico de Câncer, mas aproximadamente 60 kilômetros ao norte. Syene e Alexandria não estão nem mesmo sobre o mesmo meridiano, com Syene 3³3’ a leste. E, como era de se esperar, as caravanas de camelos provaram ser menos precisas em suas medições de distância; a metrópole e o oásis estão distantes entre si menos de 5000 stadia – ou seja, 725 kilômetros de distância, ao invés de 800. Mas os vários erros devem ter cancelado uns aos outros.

Eratóstenes, em seu experimento para medição da Terra, foi certamente primeiro escalão, alpha, não beta. George Sarton, o historiados da ciência, escreveu: “Havia entre eles um homem genial, mas como trabalhava em um novo campo, eles eram muito estúpidos para reconhecê-lo. Usual como nestes casos, eles provaram não a ignorância dele, mas de si próprios”.

Foi Eratóstenes que primeiro provou a “capacidade exploratória da mente humana” em uma escala global, condensando o tamanho da Terra de imensidão desconhecida para uma dimensão capaz de ser medida. Ele morreu com 80 anos sabendo com incrível precisão o tamanho e o formato da Terra – mas sem conhecer muito sobre as terras e mares que cobrem a Terra que ele mediu.